S I L Ê N C I O

Quando ele acordou naquela manhã, não viu ninguém. O silêncio ressoava na penumbra do quarto e ele ponderou abrir as pesadas portadas de madeira para deixar entrar um pouco de luz, mas as forças faltaram-lhe. Soçobrou, sentindo-se irremediavelmente perdido para si mesmo e para os outros, e encolheu-se debaixo dos cobertores. Na sua cabeça vagueavam medos irrisórios de espectros que viriam para o assombrar e ansiou por ruídos que se sobreporiam ao silêncio e o chamariam de volta à realidade do seu dia-a-dia e eliminariam aquele torpor onde se encontrava. Nada. Apenas aquele silêncio desconcertante, semelhante a um martelar oco e frio na sua mente, no seu quarto, no seu mundo. Ganhando uma dose de coragem, levantou-se e saiu do quarto, percorrendo com um vagar irritante as divisões da sua casa. Escuras, todas elas. Vazias. Quase despidas, quase sem alma.

«Estou só», pensou. «Só».

E aquela palavra tão pequena ganhou vida própria e gritou-lhe aos ouvidos do coração «ESTÁS SÓ! SÓ! SÓ!», e feriu-lhe a alma. Quando olhou em volta percebeu que o silêncio ecoou o seu pensamento mas de forma quase ensurdecedora e compreendeu que a ausência de som tem uma linguagem muito própria, que por vezes fala mais alto do que qualquer outra coisa que tenhamos ouvido durante as nossas vidas. Ele nunca se tinha sentido tão pequeno, tão indefeso, tão nulo e descentrado de si, embora sempre o tivesse sido.

«Este silêncio gélido e desesperador fala a linguagem dos meus sentimentos. Recalquei-os durante tanto tempo que lhes matei a essência», pensou. «Achei que não tinha tempo para poder reflectir sobre o que sentia, mascarei os meus sentimentos e pu-los de lado para poder executar as tarefas do dia-a-dia com um sorriso nos lábios, e agora fiquei indiferente, apático, oco. Agora que estou só e não preciso de me mascarar os meus sentimentos fugiram de mim e ficou só o medo de não voltar a sentir».

Quase correu pela casa à procura de algo para fazer, algo que o absorvesse e o distraísse do seu problema. Tomou banho, abriu as portadas de todas as janelas, consertou uma tábua solta e depois olhou nervosamente em volta, aproximou-se da estante e leu os títulos de todos os seus livros, lidos e relidos várias vezes. Desapontado, deixou-se cair no sofá. A quem poderia telefonar? Onde poderia ir? Como fugir de si próprio mais uma vez, refugiando-se numa realidade inventada que não o satisfazia e onde ele não encaixava? Depois pensou melhor; tinha pedido que o deixassem só por uns dias para reflectir, para se reencontrar. Ele tinha pedido e todos tinham compreendido que ele precisava de um tempo só seu, e como o amavam tinham respeitado a sua decisão e não lhe iriam telefonar nem aparecer de repente. Ele era responsável por isto e teria de assumir a sua responsabilidade e ser a sua própria companhia. Fazer o que adiara por tanto tempo e há já tanto tempo, por muito que isso parecesse uma tarefa esmagadora que ele não fosse capaz de realizar.

Levantou-se e foi até à janela. Olhou para o jardim e ouviu o chilreio dos pássaros e o zumbir das abelhas. O perfume das flores chegou-lhe às narinas e ele aspirou-o e recordou-se do cheiro doce das glicínias da sua infância e sorriu ao lembrar que entre as folhas em cima de um muro tinha em tempos escondido a sua colecção de caracóis. Ganhou ânimo e, embora ainda se sentisse um pouco desconfortável com a solidão, foi até ao jardim e observou descontraidamente as pedras no chão, as flores, os pequenos insectos que esvoaçavam e as duas árvores que, plantadas lado a lado, se erguiam majestosamente para o céu.

«Neste momento não quero saber se pareço ou não ridículo. Não quero saber se alguém pode ver o que faço», pensou.

E, aproximando-se de uma das árvores, abraçou-a cuidadosamente, encostando a face à casca áspera e acariciando o tronco antigo, repetindo assim um gesto que tivera mil e uma vezes durante a infância. Quando o vento soprou e as folhas da árvore se agitaram, num balançar ritmado e doce, ele deixou-se embalar e recordou esses instantes de menino, quando era inocente como só uma criança pode ser, ao ponto de imaginar que a paisagem longínqua que via da sua janela era uma paisagem que a sua mãe teria pintado para que ele pudesse ver algo de belo a cada manhã. Outras recordações vieram: coisas boas e menos boas que tinham feito parte da sua vida, conquistas, derrotas, pessoas que amou e perdeu, sonhos que tinha deixado de perseguir mas que – surpreendeu-se – ainda pulsavam dentro de si, à espera de uma esperança que os alimentasse. Os sentimentos que julgara já não possuir romperam por fim a carapaça que os camuflava há tanto tempo no seu âmago e invadiram-no em catadupa, e a intensidade das emoções foi tal que ele foi incapaz de reagir, limitando-se a sentir, a reencontrar-se, a compreender, enfim, a razão de tantas coisas. A casca da velha árvore amparou as suas lágrimas e estas escorreram pelo tronco e misturaram-se com a terra.

Ele, fundindo-se desta forma com o mundo, deixou que o silêncio lhe permitisse ouvir a sua própria voz, e sentiu, pela primeira vez em tantos anos, a companhia da sua alma. Um sorriso genuíno surgiu por entre as lágrimas e ele levantou os braços ao céu e abraçou o infinito.

22/10/2009

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