Abandono OU Eterno Abraço

Vens nas noites calmas de Inverno. A chuva cai lá fora, num outro espaço que não é o meu, num outro silêncio de que não fazes parte. Os meus dedos acompanham o correr dos pingos da chuva nas vidraças de uma janela há muitos anos fechada para o mundo. Vejo o escuro do céu como companheiro apaziguador da luz que me tolda os pensamentos e recordo o que outrora fui nessas estrelas brilhantes que pensam iluminar a atmosfera pesada do universo. O fogo crepita na lareira e as últimas velas derretem ao sabor das chamas. Daqui a pouco, quando a última centelha se extinguir, ficarei submersa nas sombras e no silêncio. E o bater do coração cessará também. E a imensidão da noite acolher-me-á para a eternidade. Não tenho medo. Anseio por esse momernto há muitos anos. Já se acabou a comida, e a água deposta no cântaro é turva e sabe a lágrimas que caíram pelo meu rosto em espasmos abundantes há alguns dias. Não tenho medo. Deixei de chorar quando percebi que isso me mantinha viva e lúcida. Se a loucura viesse eu adormeceria mais rapidamente para tudo o que fui... mas nunca veio. Lúcida sempre, mas sem pensar. Esvaziei a mente de tudo, de um acumular de muitos anos de culpas e sonhos.
Vens nas noites calmas de Inverno. A chuva cai lá fora quando relutantemente pego no espelho quebrado, o mesmo que há alguns anos parti por ódio a mim. Distorcidamente vejo as minhas mãos. Mãos com que acariciei, embalei, com que escrevi páginas de um livro solto a que chamei "Da Vida". Depois os olhos. Vivos ainda, tal como outrora, com que chorei, ri, seduzi, disse frases inalcançáveis pelas palavras. Olhos que sobressaem agora de um mar de rugas que o tempo construiu e a vida delineou. Mas a pele - toco-a -, essa ainda é macia e branca como antes... Desfaço a trança. Madeixas de cabelo branco envolvem-me e tocam na minha cintura. A tesoura à mão "já não tens tempo!", o espelho que distorce e cai no chão fragmentando-se em mil pedaços. Sete anos de azar. Sete que eu não vou ver.
Vens nas noites calmas de Inverno. A chuva cai lá fora e eu abro a janela fechada há tanto tempo. Sento-me no parapeito e olho as estrelas. A chuva lava-me a alma e refresca-me o corpo. tenho frio. Vou olhar as estrelas mais um pouco. Só mais um pouco. Já não tenho velas, e a lareira está a apagar-se. Escuridão. Mas as estrelas, essas brilham sempre.
Vens nas noites calmas de Inverno. A chuva cai lá fora e eu já não a sinto. Agarras-me na mão que não existe e eu deixo-me no parapeito da janela e subo contigo em direcção às estrelas. Mais perto. cada vez mais perto.

Comentários

maresia_mar disse…
que história mais bonita e tão bem narrada, triste mas tão sentida que até parece que vejo cada cena... a vida, a chuva.. Um bom feriado e bjhs
Vitor Soares disse…
Excelente :)
Acho que escreves para me fazer inveja, não? ;)
Sophia disse…
Magnífico, como sempre. Não o percas (texto/talento). Parece uma balada silenciosa, que todos os corações sofrem após um desgosto de amor e após este quando encontram serenidade e esperança. Eu falei-te da felicidade, disse-te que a irias encontrar, remember? Beijinho grande.
TomSawyer disse…
concordo totalmente com a shootingstar...ao ler a historia foi tao facil por-me no lugar da personagem e ver e sentir o que aconteceu...foi como que se narrasses um momento da vida por q quase todos nos passamos...excelente...os meus parabens :) continua...
maresia_mar disse…
Se te estás a esforçar estás no bom caminho... vamos lá tirar isso tudo de lá de dentro, gostar de nós para gostarmos dos outros.. Bjhs e bom feriado

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